1964 – Fama e Privilégio – Atriz Sarah Bernhardt

Por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Agora já não há mais ilusões. Agora ela sabe perfeitamente que todo o seu brilho, seu privilégio, sua posição social, o conforto de sua casa e a beleza dos seus jardins, tudo, até seu nobre endereço, não gera nada de bom ou útil, não funciona como bom exemplo e nem cria nos outros o impulso e o motivo para a procura do sucesso; de nada serve seu esmero, sua elegância, seu cuidado consigo mesma, sua sempre aprimorada educação ou mesmo a também sempre aprimorada sabedoria.

A simples e crua realidade, aceita dentro dela com uma sórdida calma, com uma cruel evidência, é que, tudo aquilo que ela é, todo o sucesso que faz, tudo o que representa, gera no outro apenas inveja. Inveja e o consequente desejo de vê-la ruir, cair por terra, perder a beleza, a fortuna, a casa, os jardins… A cada vez que as revistas e os jornais falam dela, mostram fotos de sua supostamente bem sucedida trajetória na vida, o resultado é aquela nuvem negra da inveja, que desce sobre ela com a fúria das grandes tempestades e que é, sim, capaz de destruir tudo o que ainda há de bom em sua vida e o resto da felicidade (um dia vivida) que ainda habita seu coração; capaz de destruir os bons sentimentos que – a despeito das muitas decepções – ainda vivem dentro de sua alma: seu amor pela filha, pela mãe, por alguns empregados, pelas plantas e pelos jardineiros, pelos livros e até mesmo pelo canalha do seu marido e também, é claro, por seu amante perdido.

Esquecido no colo o exuberante exemplar da revista que mostrou, em quatro páginas duplas de fotos coloridas, o seu maravilhoso estilo de vida, Antônia se despe de qualquer ilusão da fama. Sente que esta apenas traz todo o peso dos sentimentos de inveja de milhares e milhares de paulistanos que, a esta hora, enfrentam uma vida monótona, dura, de dificuldades, frustrações, esforço, doença. Percebe com clareza que ela, em vez de ser um ídolo, um exemplo, um estímulo, é apenas uma afronta a todos os que lutam, muitas vezes em vão, por uma vida mais digna e que, em vez de a venerarem, a odeiam e, secreta ou abertamente, desejam apenas que toda aquela aparente maravilha da sua vida se parta, como uma taça caída ao chão. Antônia sente, com uma certeza seca, que todos os leitores daquela revista seriam mais felizes se ela quebrasse as pernas, se sua mansão pegasse fogo, se um ladrão a despisse de suas caras e elegantes roupas e levasse embora as suas joias. Decide então que nunca mais dará entrevistas ou permitirá que sua intimidade seja exposta publicamente.

É de manhã cedo. Os passarinhos executam a sua alegre sinfonia nas árvores dos jardins, alheios aos sórdidos sentimentos nutridos pelos humanos. Antônia, distraidamente, ainda com a revista nas mãos, se dirige para a mesa do café, naquela manhã de sol, ricamente posta à beira da piscina. O jardineiro a cumprimenta. A criada sorri e sua filha Cláudia atira-se, esbaforida, sobre a cadeira, gritando que – como sempre, pensa Antônia – está atrasada para a faculdade, exigindo que a empregada saia quase correndo para a cozinha, em busca do café forte que só a garota toma.

— Bom dia, minha filha – diz Antônia com a voz calma.

— O que é isso, mãe? Saiu a matéria? Deixa eu ver.

E esquecida do atraso, Cláudia analisa, com ar indecifrável, as fotos, os textos, os subtítulos em destaque, das quatro páginas da revista. Vê a si mesma retratada como “a jovem e encantadora herdeira do ilustre casal” e seus olhos se iluminam. Antônia lê, na expressão de sua filha, o orgulho do privilégio, um orgulho que ela, há tempos que lhe parecem imemoriais, também sentiu. Por um instante, fica tentada a dizer a Cláudia que tudo aquilo é apenas uma ilusão, que é na verdade profundamente destrutivo. Mas cala-se. Em vez disso põe-se a pensar, saboreando sua deliciosa salada de frutas com mel, em que espécie de jornalista a filha se tornará quando terminar seu curso na faculdade. Como um eco aos seus pensamentos, Cláudia diz:

— A reportagem é bonita, mas falsa. Mãe, eu jamais seria capaz de escrever uma matéria fútil e cheia de puxassaquismos como essa. — e põe a revista de lado. Levanta-se, súbita e novamente apressada, dá um beijo no rosto de Antônia e sai correndo em direção ao seu carro – um chevrolet Belair Rabo de Peixe, branco e vermelho, conversível – que o chofer já posicionou estrategicamente na alameda que conduz ao portão.

Claudia – pensa Antônia – é muitas vezes privilegiada: rica, dirige seu próprio carro, bonita, inteligente. O que a vida lhe reservará? Poucas brasileiras podem ser tudo isso, podem dirigir seu próprio automóvel e pouquíssimas dirigem a própria vida. O que será de sua filha no futuro? Acostumada à liberdade e aos privilégios, que homem a quererá? Antônia sabe que os jovens supostamente libertários da geração de sua filha, dormem com as colegas sexualmente livres, mas casam-se com as virgens. Discutem política com aquelas que dividem com eles os bancos das salas de aula nas faculdades, mas exigirão que suas mulheres votem nos candidatos escolhidos por eles. Libertários da boca para fora, os homens dessa geração, continuam exatamente como o foram seus pais: machistas e preconceituosos.

Naquela noite, Antônia, como sempre, após o jantar, quando o marido sai para a casa da amante e a mãe se recolhe aos seus aposentos, senta-se com seu cálice de licor, em frente ao espelho. Não sabe bem o que espera. Consolo? Esclarecimento? Mas o definitivo desmoronar de seus sonhos de glória pública, ela sabe, há de trazer alguma mulher mais sábia que ela própria para livrá-la daquele estranho peso no peito.

Estava quase adormecendo na poltrona quando uma voz maravilhosa a despertou completamente:

— Mon Dieu! – disse a mulher no cristal – quando me vi nesse espelho, em Veneza, jamais poderia imaginar que ele, e eu junto com ele, viéssemos parar nessa terra de fim do mundo.

Antônia riu, reconhecendo a maior atriz de teatro de todos os tempos, Sarah Bernhardt.

— O Brasil não é o fim do mundo – disse Antônia – Este ainda será um grande país.

Sauvage! É o que me parece. – respondeu a linda mulher no espelho –Além do mais, Brasil lembra o meu calvário em vida. Foi num palco do Rio de Janeiro que um tombo estúpido condenou para sempre a minha movimentação.

— Mas você não parou de atuar, parou?

Oui, não parei, mas é muito diferente atuar numa cadeira de rodas ou mesmo com aquelas próteses primitivas. Ficava de pé. Mas não era a minha perna. Eu sei que hoje vocês tem coisa bem melhor do que no meu tempo.

— Sabe, – disse Antônia – eu estava mesmo querendo conversar com alguém que tivesse tido fama, que fosse uma figura pública… Mas… Sarah Bernhardt! É demais! Você se foi há quatro décadas e até hoje é considerada a mais famosa atriz do mundo! E olhe que hoje existem os astros de Hollywood.

— Quase fui um deles – riu Sarah, coquete, dentro do espelho  — Hollywood estava filmando na minha casa, em Paris, quando meus problemas renais me mataram, em 1923.

— A minha grande curiosidade – explicou Antônia – é saber como pessoas de sucesso com você fazem para suportar a fama.

— Como assim, suportar, ma petite? – perguntou a atriz com espanto – A fama é uma das melhores coisas da vida. Veja bem: eu nasci de uma prostituta com um estudante de direito. Meu pai, para não sucumbir à vergonha de ter gerado uma criança com uma cortesã, me escondeu nos colégios de freiras. Eu vivi com aquelas mulheres horrendas e tristes e foi apenas a fama que me deu o direito de falar e de viver o que eu realmente pensava. Se eu fosse uma maria ninguém, talvez tivesse terminado meus dias no hospício ou na cadeia, por causa da vida que eu levava e que levaria mesmo que não fosse famosa. Eu desafiei os costumes e só me aceitaram porque eu era quem era.

— Você está dizendo que a fama gera permissão para transgredir? – perguntou Antônia.

— Oui! Foi a fama que me permitiu viajar pelo mundo com um séquito de serviçais e dezenas de malas, me vingando dos tempos de penúria dos conventos. Ah… E, antes de ser famosa, fui escorraçada do teatro onde trabalhava porque dei um tapa na cara da arrogante estrela, da qual ninguém mais se lembra, enquanto que de mim… – e soltou uma risada irônica – Foi também por causa da fama que eu tive os amantes que quis ter, tanto homens como mulheres. Usava calças compridas, quando nenhuma mulher chamada direita ousava se vestir assim. Amei tanto a pintora Louise Abbéma quanto o nobre belga casado com outra mulher e com quem tive meu único filho. Fui amada e venerada por um gênio do porte de Oscar Wilde, que também desafiava o estabelecido com sua bissexualidade. Só por causa da fama, minha cara Antônia, pude viver muito à frente do meu tempo e ser livre, livre!… Mesmo quando cortaram uma das minhas pernas.

— Dizem que você foi também amante de Victor Hugo e até de Albert Edward, o Príncipe de Gales. – comentou Antônia.

— A vida reserva muitos amores para quem tem coragem de vivê-los.

E Antônia pensou na sua renúncia. Sentiu-se covarde por não ter levado até o fim o seu caso com Anésio.

— Compreendo – disse Antônia – que a fama proporcionava a você uma maior liberdade. Mas quando eu digo “suportar” estou me referindo à inveja, quase sempre acompanhada do rancor, da qual os famosos são vítimas.

— É verdade – refletiu a grande atriz – Fui muito invejada e talvez ainda o seja. Mas também fui amada. Você se esquece que se a fama gera inveja gera também amor. O público é realmente grato a você quando você consegue mais que entretê-lo, consegue emocioná-lo, abrir-lhe os olhos e o coração. Aí, Antônia, é que eles te amam.

Pobre de mim – pensou Antônia, desviando os olhos dos dela, – que da fama só gero a inveja.

Mas quando se voltou para o espelho, La Bernhardt já se fora.

Na manhã seguinte Antônia acorda sob um céu de chumbo. Nada lembra o dia ensolarado e radiante de ontem. Os pássaros estão mudos e a chuva cai torrencialmente sobre as suas mais caras flores. Quando desce para o café, Cláudia e Fabrizio estão debruçados sobre o moderno rádio de pilha, que divide espaço na mesa com os brilhantes e coloridos artefatos do desjejum dos ricos. Percebe imediatamente que algo muito sério está ocorrendo:

— Bom dia. – diz quase assustada – O que aconteceu?

— O Brasil amanheceu sob as botas de um golpe militar.– explica Fabrizio.

E apesar da gravidade do fato, pai e filha se olham e dizem, ao mesmo tempo:

— Eu sabia! — E, pela coincidência de suas falas, caem na risada.

Fabrizio pensava que os militares colocariam “ordem da casa” e, em um ou dois anos, devolveriam o poder aos civis. Claudia pensava que Jango e Brizola estavam flertando demais com os regimes comunistas que, na sua maneira de ver, eram tão ditatoriais como os de direita.

Nenhum deles, porém, poderia adivinhar – ou sequer sonhar com – os anos de Terror que o Brasil viveria pelas próximas duas décadas.

Publicado por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Escritora, com 20 livros publicados, fui a jornalista pioneira em programas médicos na TV no Brasil. 30 anos de TV: Gazeta, Record, Rede Mulher e Band. Apresentadora e produtora. Há 21 anos na WEB editando o Portal SAÚDE&LIVROS.

Deixe um comentário

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora