AIDS e Preconceito (2007) – Sandra Bréa

Por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

— Levei um susto enorme – dizia Antônia a Fábio – quando vi aquela moça aparecendo dentro do Espelho! , pensei, será que o Espelho agora está pegando a TV Globo? – e caiu na risada.

— Claro, né, vovó? Até então nunca vira uma mulher do passado recente, estou certo? – perguntou ele.

— Isso mesmo. Jamais poderia imaginar uma atriz global me aparecendo no Espelho. E olhe que ela estava linda! Linda mesmo. Imediatamente, me lembrei que, na época em que ela fazia muito sucesso com aquele programa ao lado do Miéle, ela estivera numa festa na nossa casa da avenida Brasil. Isso foi em 1976, tenho quase certeza… Seu avô contratara gente da TV e do teatro de revista, várias vezes, para organizar eventos e festas da fábrica e também costumava pagar aos artistas para que fossem abrilhantar as nossas festas. Um procedimento, aliás, que ainda era pouco comum. Hoje qualquer novo rico contrata artistas para impressionar os seus convidados. Quando Sandra e Miéle estiveram na nossa casa o Espelho ainda estava lá, só veio para a casa de sua mãe dois anos depois, então muito natural que a imagem dela estivesse nele…

— E quando foi que Sandra morreu, vovó?

— Em 2000, em maio de 2000. Tinha apenas 47 anos, Fábio. Faria 48 dali a uma semana. Ela apareceu para mim tão linda quanto aparecia na TV, mas me disse que morrera muito feia, magra, escangalhada pela AIDS e pelo câncer de pulmão que, afinal, foi a doença que a matou tão precocemente. Ela acreditava, no entanto, que as maiores responsáveis por precipitar a sua morte tinham sido a tristeza e a decepção. No ano 2000 a AIDS já não vitimava tanto as pessoas como no começo da epidemia, nos anos 1980. Nessa época sim, ter AIDS era receber uma sentença de morte. Sandra teve a coragem de, em 1993, anunciar publicamente que estava com o vírus. Foi um horror. Começaram a dizer que era tudo mentira, que ela estava usando essa notícia para voltar às manchetes, já que na década de 1990 ela era, é claro, famosa, mas não tanto quanto fora na época do programa Sandra & Miéle.  Eles eram super badalados e pelo programa deles passaram centenas de artistas e personalidades, incluindo políticos e jogadores de futebol. Até o Roberto Carlos cantou lá.

— Sei que fizeram dele uma figurinha difícil depois que virou exclusivo da Rede Globo. – disse Fábio.

— A casa de Sandra Bréa – continuou Antônia, ignorando a observação dele sobre o cantor – se tornou um ponto de encontro de quase todas essas celebridades. O programa com Miéle acabara, mas Sandra continuava brilhando na telinha, em novelas e especiais. No entanto, depois que ela assumiu a doença, não lhe deram mais nenhum papel até 1997, quando ela conseguiu uma pequena participação numa novela. Ironicamente, anunciando que era portadora do vírus da AIDS, ela pensava estar contribuindo para a divulgação de esclarecimentos sobre a doença e para a diminuição do preconceito. Pois o preconceito caiu sobre ela com toda a força de sua crueldade. Além de não ter mais trabalho, não tinha mais também os amigos. Só o caseiro, José Carlos, ficou com ela até o fim. O caseiro e um único amigo que, pelo jeito, era amigo de verdade, o ator Ney Latorraca. Mesmo o seu filho adotivo, seu único filho, se afastou. Por isso ela me disse que, mais do que de câncer, mais do que de AIDS, ela morrera de tristeza.

— É uma história bem triste mesmo – disse Fábio. – Mas os famosos não deveriam ser ingênuos a ponto de acreditar que todo o séquito que vive atrás deles é composto de verdadeiros amigos.

— Acho que não são tão ingênuos assim – disse Antônia – Mas é muito fácil, quando se está por cima, a gente se iludir com as pessoas. Você não sabe quem está ao seu lado por conveniência, interesse, e quem está porque realmente se afeiçoou a você. Quando perdemos nossa fortuna e nossa posição, seu avô e eu também sentimos na pele algo parecido. Sobraram poucos amigos no nosso círculo. E seu avô cantava, morrendo de rir, um verso da famosa canção do jazz, se não me engano de autoria de Jimmy Cox: “Nobody knows you when you’re down and out”.

— Ainda bem que ele conseguia rir da situação – disse Fábio— Mas a minha mãe me contou que vocês não ficaram exatamente pobres…

— Não – respondeu Antônia – Porém deixamos de ser milionários e tivemos algumas restrições. Mas é claro que não foi nada comparado ao contraste que essa moça viveu. Ela era uma estrela, festejada, tinha o mundo aos seus pés, a casa sempre cheia de admiradores e, da noite pro dia, se viu sem trabalho, sem prestígio e sem amigos.

— Tudo por causa de um preconceito – suspirou Fábio.

— Um preconceito que nós também teríamos, caso não fossemos descendentes de Maria Júlia. Ela nos criou para viver com a mente aberta, percebendo que a morte é que nos iguala, a todos, pobres, ricos, doentes, sãos, pretos, brancos, homens, mulheres ou gays… E sua bisavó descobriu tudo isso por causa do Espelho.

— O mesmo Espelho em que Vitória não acredita.

— Paciência, meu filho – e Antônia acariciou de leve o braço do neto – Você a ama e vai se casar com ela. Leve o Espelho para a sua casa. Um dia ela acabará vendo alguém lá dentro e saberá que não estávamos mentindo.

— Não sei não. Minha mãe está com o Espelho há quase trinta anos e nunca viu nada. Eu mesmo nem sabia direito dessas histórias até que me apareceu a Margaret Sanger.

— Eu me lembro – disse Antônia – Você ficou desconcertado.

Fábio não se lembrava de ter ficado desconcertado. Acreditava mesmo que encarara o fenômeno com bastante naturalidade. Mas não iria contradizer a sua avó. Então disse:

— Elas sempre aparecerem para mim. Só não entendo porque são sempre mulheres. Afinal, o Espelho deve ter refletido muitos homens, apesar de ter sido concebido para quartos femininos, salas íntimas e oficinas de costura.

— Os homens escreveram a história – disse Antônia, com certa solenidade – Não precisam revê-la. São as mulheres que tem que entender a história que não foi contada, a história de seu sexo, de sua discriminação e a história que elas próprias fizeram. Talvez seja por isso. Mas não tenho certeza. Apesar de conviver com esse Espelho desde que me conheço por gente, jamais compreendi as razões dele para coisa nenhuma. – e riu.

— Vovó – disse Fábio – adoro quando você ri.

Publicado por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Escritora, com 20 livros publicados, fui a jornalista pioneira em programas médicos na TV no Brasil. 30 anos de TV: Gazeta, Record, Rede Mulher e Band. Apresentadora e produtora. Há 21 anos na WEB editando o Portal SAÚDE&LIVROS.

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