O Espelho Vazio (2012)

Por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Às vezes Cláudia pensava que deveria ser como a mãe, ou como a avó, que se enriqueciam com a experiência relatada por aquelas mulheres do Espelho. Talvez sua vida tivesse tomado outro rumo, caso desfrutasse da orientação daquelas mulheres batalhadoras, exemplares.

Já havia cinco anos que Antônia se fora e o Espelho nunca mais mostrara ninguém, embora Fábio tivesse passado muitas horas esperando por alguma aparição.

Cláudia imaginava que, talvez, só enquanto estavam vivas as duas grandes matriarcas da família é que o Espelho se revelara.

Se Fábio também podia interagir com aquelas mulheres do passado, então era tudo verdade. Mas, se não fosse por isso – refletia ela – acabaria pensando que sua nora é que estava certa, que aquela história de conversar com mulheres no Espelho não passara de imaginação de sua avó e de sua mãe.

Vitória, em quase todas as brigas que tinha com Fábio, acusava a família dele de mistificadora, dizia que eles tinham inventado essa história para parecer superiores, uma espécie de “escolhidos”, diferentes dos comuns mortais que, no Espelho, viam apenas seus próprios reflexos. Fábio já se acostumara. Nem tentava mais convencer a esposa de que realmente vira e conversara com algumas mulheres do passado que apareciam dentro do Espelho.

Já Cláudia era uma mulher prática. Mas, no fundo, se ressentia por jamais ter vivido essa experiência. Quando ela era jovem se recusava a acreditar no que sua mãe e sua avó contavam. Mas depois foi se convencendo de que talvez fosse verdade e, quando Fábio, seu próprio filho, viu pela primeira vez aquela feminista… Quem fora mesmo? Ah, sim, Margaret Sanger, aí então ela quase se convencera.

Flávio também nunca acreditara. Afinal, ele era um socialista, qualquer coisa que cheirasse a mistério, a sobrenatural, estava fora da cartilha dele.

Por que? Por que nunca me aconteceu? – vivia Cláudia, nos últimos tempos, a se perguntar.

“Talvez porque você não acreditava” – dissera-lhe certa vez sua mãe, quando ela a indagara.

Sim, era verdade. Ela não acreditava. Era típico de sua geração negar qualquer mistério, todos eram mais socialistas do que conservadores, viviam o sonho dos anos 1960, acreditavam que qualquer crença no sobrenatural, qualquer religião, qualquer seita, eram simplesmente “o ópio do povo”, instrumento de dominação dos poderosos. Como iria, então, acreditar que sua avó e sua mãe conversavam com o Espelho?

Irônico – pensou –por causa de minha posição e de minha consciência política eu não acreditara no Espelho e Vitória, que vive na típica alienação individualista e consumista da geração dela, que não tem absolutamente nenhum interesse na política, também não acredita.

O fato é que o Espelho andava meio esquecido. Três anos depois da morte de Antônia, Fábio acabara por admitir que o Espelho permaneceria vazio e mudo para sempre e Vitória, afinal, conseguira convencer o marido a devolver o Espelho para a casa de Cláudia, se ela o quisesse, ou então vendê-lo a algum antiquário.

Assim, lá estava ele, majestoso, de volta à sala de estar do apartamento de Cláudia.

Agora, às vésperas de completar 68 anos, morando sozinha naquele mesmo enorme apartamento que comprara havia mais de três décadas, Cláudia pensava que bem poderia ter as mulheres do Espelho por companhia.

Flávio morrera logo depois do carnaval, assim que voltaram daquela maravilhosa viagem de navio. Se eu soubesse que seria a última

A solidão lhe pesava como chumbo. Para muitas mulheres a viuvez era uma libertação, mas não para ela. Amava profundamente o marido e tinha certeza de que a aposentadoria o matara.

Desde que voltara do exílio, a vida de Flávio tinha sido a Universidade. Pesquisas, aulas, dedicação completa a ensinar as gerações que lhe sucederam, gerações despolitizadas, herdeiras da ditadura militar que transformara tudo em comercial e consumo.

Flávio vivera esses trinta e tantos anos com o único objetivo de, através de seus alunos, recuperar ao menos parte da consciência política perdida pela sociedade brasileira. Vivia para isso e para ela, Cláudia.

E ela? E agora, como e pra que continuar sem ele?

A Universidade aposentava seus professores, compulsoriamente, quando estes atingiam a marca dos 70 anos de idade. Alguns conseguiam ainda o consolo do título de Professor Emérito e continuavam ligados à Universidade por laços mais tênues, mais ainda ligados. Não fora o caso de Flávio, que jamais fizera o jogo político necessário, na vida acadêmica, para conseguir essa distinção.

Cláudia lembrava-se do que acontecera também com seu próprio pai. Fabrizio passara o cetro, na fábrica, aos sobrinhos, quando percebeu – ele mesmo dizia – que era hora de dar o poder às novas gerações. Mas fizera isso por livre e espontânea vontade. Mesmo assim, continuara indo à fábrica todos os dias e ficava ali, em seu luxuoso escritório, com seu computador e sua velha secretária, sempre à disposição daqueles que precisassem de um conselho, de uma conversa, de uma orientação ou de um simples desabafo.

Flávio não. Ao completar 70 anos, simplesmente virou carta fora do baralho. Ele sentira-se escorraçado. Homem de intelecto brilhante, que resistira à tortura na prisão política, que resistira ao exílio, pensava não se deixar abater pela aposentadoria compulsória. Uma vez por semana alguns ex-alunos seus se reuniam na biblioteca do apartamento deles para discutir questões relevantes aos destinos do país. Mas era pouco. Ele precisava de mais. Tentava se distrair, ia às compras, lia desesperadamente, porém a depressão acabou vencendo. Aquela viagem de navio fora uma tentativa… Na volta, o infarto o matou em poucos minutos.

Para Cláudia era diferente. Estava havia dez anos fora das redações. Mas continuava dando consultorias e escrevendo artigos, sempre na área de gastronomia, tudo pela Internet. Enquanto Flávio estava ali com ela, não se sentia só, mas agora…

Agora dera para pensar que estava velha e que não conseguira fazer nenhuma diferença no mundo. Na juventude, os sonhos de igualdade, o envolvimento com a militância de esquerda, que logo a decepcionou. Depois, o trabalho frustrado na revista feminina e, quando ela acreditava que poderia seguir os passos da avó, na luta pela igualdade entre os sexos, a revista mudara de linha. Os editores não quiseram admitir, mas a mudança aconteceu logo que a Ditadura mandou recolher das bancas de todo o país o exemplar que trazia uma entrevista com uma atriz famosa, adepta do amor livre (era assim que se falava nos anos sessenta: “amor livre”, para nomear a liberdade sexual) e da igualdade de oportunidades a todos os seres humanos. Cláudia fora demitida. Não “combinava”, disseram, com a nova proposta editorial daquela publicação…

Para, por fim, virar uma entendida em gastronomia. Está certo que hoje, com quase setenta anos, era ainda reconhecida e respeitada como autoridade no assunto. Viajara o mundo todo a trabalho, escrevera meia dúzia de livros, milhares de artigos e ainda estava na ativa, graças à Internet.

Mas que raios de diferença no mundo fazia a gastronomia? – pensava ela. Ah, sim é claro, movimentava a economia. Mas que mudança social trazia?

Ela estava a par, evidentemente, das novas tendências gastronômicas, que uniam a nutrição ideal ao sabor ideal; sabia das iniciativas de alguns famosos chefs internacionais que trabalhavam no sentido de popularizar a alta gastronomia e torná-la também o sonho dos nutrólogos e dos cardiologistas; havia também a forte tendência pela gastronomia sustentável.

No entanto, era muito pouco. Fora apanhada nessa armadilha e agora parecia tarde demais para soltar as amarras, os laços, recomeçar.

Estivera tentando ler um livro, mas não conseguia se concentrar, sempre esses pensamentos, essa sensação de inutilidade a persegui-la. Ergueu os olhos do livro e olhou para o Espelho, à sua frente na sala de estar. Mas a única imagem que ele lhe devolveu foi o seu próprio rosto envelhecido.

Publicado por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Escritora, com 20 livros publicados, fui a jornalista pioneira em programas médicos na TV no Brasil. 30 anos de TV: Gazeta, Record, Rede Mulher e Band. Apresentadora e produtora. Há 21 anos na WEB editando o Portal SAÚDE&LIVROS.

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